A Flor e o Colibri

Uma vez, me falaram que são nos lugares mais simples onde os melhores momentos da vida acontecem... nunca acreditei nisto. Eu morava em uma praça, havia lugar mais simples que este?
Um morador de rua, que grande futuro eu tinha? Pedir esmolas era a minha “profissão”. Em uma de minhas andanças, procurando o pão da semana passada, tudo o que consegui foi perder a visão. Indubitavelmente foi a coisa mais dolorosa da minha vida. Mas, naquele dia, eu me senti notável.... Até hoje recordo-me das pessoas ao meu redor “O que aconteceu?” “Ele foi mais uma vítima de violência” “Pobre garoto!” “Ajudem! Ajudem!”. Eles me alimentaram e me vestiram durante exatamente uma semana, dentro de um recinto hospitalar. Lembro-me de uma analogia que fizeram... Eu era como um pássaro ferido, um pequeno pássaro preso dentro de uma gaiola que em breve seria libertado... Naquela época, eu queria ficar naquela gaiola eternamente.
Meus pais não se importavam para mim, eu era simplesmente um instrumento de dinheiro nas mãos deles, mas nem por isso eu odiava-os... Afinal, eram os meus pais. Depois que fiquei deficiente, me abandonaram, e, por muito tempo, sobrevivi de pena. Ah pena... me perseguistes durante anos de diversas formas não? Eu era uma pena, sem rumo e sem controle, sempre a espera de ventos que me soprassem ,e, as vezes, até mesmo temporais. A única pena, que realmente fico feliz por não ter em minha história foi a pena de morte... Devo este escape a uma senhora que mudou a minha vida.
Lá estava eu, na mesma praça, com uma vida pacata... vida que, cada vez mais, desejava que partisse. Acreditava que isto era iminente, até que ela despertou-me de meus pensamentos...
- Garoto?
Era evidente que ela não falara comigo, a tempos não falava com ninguém... eu era apenas mais um corpo desprezível em um mundo perdido.
- Garoto? Escutas-me?
- Sim, senhora
- Podes levantar-te?

Hesitante, fiz o que me pediu. E guiou-me até um banco onde o silêncio prevaleceu. Diversas coisas passaram em minha mente, mas o correto parecia permanecer calado... E assim fiquei.
- Estais com fome garoto?
- Sim, senhora
- Te alimentarei, se me responderes tudo que a ti perguntar

Com a fome que sentia, não poderia dar-me ao luxo de recusar absolutamente nada. Apenas assenti com a cabeça, sentindo medo do que era desconhecido.
- Qual seu nome?
- Meus pais me chamavam de moleque, senhora
- Onde eles estão agora?
- Eu não sei...
- Qual a sua idade?
- Idade?
- Quantos anos você tem?
- Antes de ficar cego, tinha 11
- Acho que deves ter 14, não sei ao certo... Mas então, qual é a sua história?

Eu lhe contei a minha vida, e ela me ouviu. Nunca ninguém havia me perguntado isso, muito menos, em troca de comida... Ela cumpriu o acordo e prometeu que voltaria no dia seguinte.
Durante semanas, a senhora me ajudou, em troca, ela cobrava uma coisa nova: Atenção.
Atenção para suas histórias, atenção para coisas novas. Ela me ensinara várias coisas... palavras, versos, poemas e poesias. A minha heroína me presenteou com a coisa mais bela que poderia imaginar: Um nome.
Eu não poderia vê-lo e nem tocá-lo, mas ele, como a minha vida, agora era real.
- “Não quero mais saber do lirismo que não é libertação”
- Quem escreveu esse, senhora?
- Manuel Bandeira, meu caro
- Um dia, eu quero escrever igual ao Manuel...
- Por que não começamos pelo nome?
- Como assim?
- Agora, te chamarás Manuel, que tal?
- Manuel... Eu sou Manuel?
- Sim meu caro, você é o meu pequeno e sagaz Manuel...

Uma vez que minhas necessidades foram atendidas, a ambição pelo saber aumentara gradativamente, e se manifestava de forma indescritível ao ouvir a doce voz daquela senhora... Até que um dia, ela me deu o mais importante aprendizado.
- Manuel?
- Sim, senhora
- O que tu vês?
- Eu vejo o nada, nada além de uma escuridão infinita
- Não Manuel, olhai-vos com teus outros sentidos
- Outros sentidos?
- Escute, inspire e sinta o mundo a sua volta... O que vês?

Escutei pessoas conversando e gargalhando, inspirei o perfume das flores que nos cercavam e senti... senti a mão da senhora segurando a minha... ela era o meu porto seguro...
Após uma espera que parecia ser interminável eu conseguir enxergar a minha luz.
- Eu vejo pessoas anônimas, desconhecidas para a sociedade, mas protagonistas de suas próprias histórias.
- O que é a vida Manuel?

- A vida é um duro caminho no qual aprendemos a amar, a chorar, cair e se levantar... Todos somos estrelas na Terra, e devemos brilhar até a hora de nossas luzes se apagarem. Resplandecer e saber, que fizemos um bom trabalho. Devemos viver, com a esperança de que o próximo dia será melhor.
E pensar, que este era o começo de minha história...
A doce senhora, hoje, é a minha mãe. Não me tornei igual ao Manuel Bandeira, mas ultrapassei barreiras de um mundo estereotipado e hoje... hoje sou escritor.
E eu era o pássaro ferido, aprisionado em uma gaiola e libertado em um mundo de escuridão.
E eu era um colibri, voando na direção oposta, em busca da flor desconhecida
A flor?
A flor era a vida.


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